Real 20 Anos: a arte de comprar um carro zero-quilômetro em 1994

Imagine a cena: o cliente entra na loja em busca de um Gol zero-quilômetro e oferece um carro usado, do mesmo modelo, ao gerente. Pede ainda o troco, porque o seu automóvel está mais caro do que o novo…
Era mais ou menos assim que o mercado se comportava há 20 anos, quando o Real entrou em circulação. Com a insegurança em relação ao futuro das aplicações financeiras e a expectativa do recuo do dólar no início da operação da nova moeda, a procura pelos 0km explodiu.
As pessoas viam os carros como investimento. A demanda aumentou e, logo, os modelos mais baratos sumiram das lojas. Resultado: os preços dispararam.
Daí veio o ágio — que, em alguns casos, ultrapassava 100% o valor de tabela. O sobrepreço era imposto por concessionárias e agências independentes a quem quisesse um carro imediatamente.
Cabe uma explicação: um ano antes de lançar o Real, o presidente Itamar Franco havia criado o programa do “carro popular”. Valia para modelos 1.0 e tinha como exceções o Fusca, a Kombi e o Chevette (todos com motor 1.6). A ideia era que os “populares” pagassem um valor simbólico de Imposto sobre Produtos Industrializados (0,1%) mas, em contrapartida, custassem, no máximo, US$ 7.200.
De um dia para o outro, o mercado se viu dominado pelos carros 1.0 — a demanda era tanta que as filas de espera duravam meses. Carro para pronta-entrega? Só pagando o famigerado ágio. Os preços da tabela oficial se tornaram praticamente simbólicos.
Assim, usados com um, dois ou até três anos de fabricação acabavam sendo vendidos por valores mais altos que os da tabela de zero-quilômetro.
USADO MAIS CARO DO QUE ZERO
Um Uno Mille Brio usado, ano 1991, era anunciado no jornal por R$ 7.630. Na tabela, um Uno Mille Eletronic novo em folha custava R$ 7.254. Na prática, contudo, o valor do 0km quase dobrava.
O Corsa 1.0, muito procurado por ser um projeto moderno e com injeção eletrônica, era tabelado em R$ 7.350. Mas, em algumas lojas do Rio, chegava a ser vendido por até R$ 15 mil (o equivalente a R$ 63.400 nos dias de hoje, com valores corrigidos pelo IPC-A).
A Receita Federal tentava coibir a prática, já que os revendedores pagavam impostos em cima do valor de tabela e sonegavam o ágio. À época foi calculado que a “Máfia do Ágio” vendeu 134.300 automóveis com sobrepreço médio de 30%.
— O número de fabricantes e a concorrência eram menores e faltavam carros no mercado. O ágio era quase inevitável — lembra Ana Maria da Silva, vendedora com 25 anos de experiência e que trabalhava numa concessionária Volkswagen em 1994.
A procura pelos 0km era tanta que criava situações curiosas. Um “lugar” na fila de espera para comprar um carro em uma concessionária chegava a ser vendido por R$ 1.500 (R$ 6 mil de hoje). Comerciantes escondiam os carros novos para alimentar o ágio. Outros, para evitar a fiscalização, transferiam o carro para o nome de laranjas, rodavam 500km e o vendiam como “semi-novo”.
— A prática do ágio é coisa de escassez. Excesso de capacidade produtiva é bom, pois o mercado começa a se nivelar pela qualidade de cada marca, de cada produto — analisa Luiz Carlos Mello, do Centro de Estudos Automotivos (CEA).
A REAÇÃO DO GOVERNO
A situação só foi se normalizar em 1995 com duas medidas pontuais do governo: a redução do imposto de importação de 32% para 20% e uma nova lei que proibia a revenda do carro popular em menos de um ano, sob pena de cobrança de ICMS e IPI adicionais.
Apesar das filas nas concessionárias, os carros vendidos naquele ano de 1994 não tinham preços milagrosos. Resgatado por Itamar Franco em 1993, o Fusca 1600 era o modelo mais barato do Brasil: seu valor de tabela era de R$ 6.743 — o equivalente, nos dias de hoje, a R$ 28.495 em valores corrigidos pelo IPC-A. Isso sem considerar o ágio, que no caso do “besouro” chegava a 26%.
Para efeito de comparação, o carro mais barato do Brasil hoje é o Chery QQ, a partir de R$ 22.990. O pequeno carro é importado da China — algo que não se imaginava em 1994.
Já os populares da época tinham valores de tabela parecidos – ou até menores – que o de modelos equivalentes atuais. Um Gol 1000, por exemplo, custava R$ 7.243 (R$ 30.608, na correção pelo IPC-A) e um Uno Mille saía por R$ 7.254 (R$ 30.654). Hoje, o Gol mais barato custa R$ 32.140 na versão Trendline 1.0 e o um Uno Vivace parte de R$ 26.110.
— Hoje os carros até custam mais para ser fabricados, mas a margem dos fabricantes e revendedores é menor por uma razão simples: o aumento do número de marcas — analisa Luiz Carlos Mello.
SEDÃ MÉDIO ERA COISA DE RICO
Entre os sedãs médios as diferenças são notáveis. O Vectra GLS, sonho de consumo da classe média, era vendido por R$ 29.223, o que hoje equivaleria a salgados R$ 123.500! Um Chevrolet Cruze, seu equivalente nos dias de hoje, começa em R$ 72.196 na versão LT 1.8.
O Escort XR3 conversível, objeto de desejo de dez em cada dez playboys, teria um preço considerado surreal nos dias de hoje: R$ 36.683 de tabela, o equivalente a R$ 155 mil atualmente.
Entre os importados os preços eram ainda mais astronômicos em 1994. O BMW 325i, apelidado de “Fuscão de rico” de tanto que vendia, custava à época R$ 61.476, o mesmo que R$ 259.800 em valores corrigidos pelo IPC-A. Hoje, um BMW 320i Active Flex sai por R$ 134 mil e a versão 328i não passa de R$ 210 mil.
— Os carros importados eram vendidos para quem realmente tinha muito dinheiro. O que saía bem era Gol, Uno e Corsa — lembra Ana.
Com apenas quatro fábricas de carros de passeio instaladas aqui (Volks, Ford, Fiat e GM), o mercado nacional tinha números tímidos comparados aos de hoje.
As vendas de carros e comerciais leves em 1994 foram de 1,1 milhão de unidades. Em 2004, esse número chegou a 1,4 milhão. No ano passado foram 3,5 milhões, o que faz do Brasil o quarto maior mercado automotivo do mundo.
— O volume de crédito era menor e os prazos mais contidos. E ainda tinha a inflação, que não estava totalmente controlada. Em suma, naquela época o poder aquisitivo era menor que o de hoje — resume Luiz Carlos Mello.
Passado tanto tempo, ainda há casos de ágio quando o modelo tem muita procura ou, especialmente, é recém-lançado. Mas nada que se compare às loucuras que aconteciam naquele anos de 1994.
Do O Globo.

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